Delegada Lara Shuster destaca que é importante ficar sempre
atento às mudanças de comportamento das crianças
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Nesses primeiros meses do ano, já foram
instaurados 56 inquéritos policiais. Vizinhos, padrastos, maridos de tias e até
mesmo pais são maioria dos abusadores, segundo DAGV
Alessandra Cavalcanti
Jornal Correio de Sergipe
alessandracavalcanti@correiodesergipe.com
No
dia 7 de maio,completará um ano que o cruel assassinato da pequena J.A.S., de
apenas 7 anos, em Neópolis – no Baixo São Francisco sergipano, distante 123
quilômetros de Aracaju –, deixou Sergipe estarrecido. A menina desapareceu misteriosamente
e foi encontrada sem vida três dias depois, dentro de um saco plástico jogado
em um matagal. “Ela estava somente de calcinha e apresentava sinais de tortura
e de abuso sexual”, informou o delegadoLeógenes Corrêa.
Corrêa
não somente investigou o caso e localizou o corpo, como também ouviu do
padrasto da menina e de um comparsa seu (ambos presos no mesmo dia em que
J.A.S. foi encontrada morta) a confirmação de que o assassinato foi planejado e
cometido pelos dois. Eles também afirmaram que antes de ser assassinada, J.A.S.
foi amarrada em uma árvore, espancada e abusada sexualmente. O motivo? Uma
simples antipatia que o padrasto – um provável usuário de drogas – sentia pela
garota.
Diferente
do que se pode supor, casos como esse são comuns, e as denúncias aumentam a
cada ano. Somente no dia 21 de maio passado, por exemplo – ou seja, um dia após
a apresentadora Xuxa Meneghel ter revelado, no programa Fantástico, da Globo,
que sofreu abuso sexual de forma repetida na adolescência –, o Disque-Denúncia
Nacional (Disque 100) teve as linhas congestionadas com pessoas revelando casos
recentes e outros guardados por anos na memória das vítimas.
Secretário Luiz Eduardo Oliva chama a atenção para a diferença entre abuso e exploração sexual |
Nos
quatro primeiros meses de 2012, o aumento foi de 30 mil ligações, sendo 11%
sobre violência sexual contra crianças dentro do lar. Isso significa um aumento
de 71% em relação ao mesmo período do ano passado. O abuso sexual afeta 15% dos
65 milhões de menores de 18 anos no Brasil, sendo que 6,5 milhões destas agressões
são contra meninas. Porém, um estudo financiado, em 1994, pela Organização
Panamericana da Saúde mostra que somente 2% dos casos de abuso sexual contra
crianças e adolescentes dentro da família são denunciados à polícia.
Em Sergipe
De
acordo com a delegada Lara Schuster Batista, da Delegacia Especial de
Atendimento à Criança e ao Adolescente Vítima (DEACAV), que compõe o
Departamento de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGV) em Sergipe, entre os
208 inquéritos policiais instaurados no ano de 2011, 90 trataram de abuso
sexual. Naquele mesmo ano, a Delegacia produziu 1.148 boletins de ocorrência
tratando do mesmo tema.
“Em
2012, foram feitas mais de 400 denúncias anônimas via Disque 100. Também foram
instaurados 250 inquéritos policiais e 1.078 boletins de ocorrência. Dentre
tantos números, um dado é importante destacar: no ano passado, logo após a
denúncia da apresentadora Xuxa, o DAGV registrou, em apenas um mês, mais de 60
denúncias feitas por telefone. Nesses primeiros meses de 2013, já registramos
56 inquéritos e 390 boletins”, detalha a delegada.
Schuster
acrescenta que a maioria dos casos é praticada por pessoas próximas às crianças
ou adolescentes, a exemplo dos padrastos, vizinhos, maridos de tias das vítimas
e até mesmo pelos pais. No tocante às denúncias anônimas, é oportuno ressaltar
que muitas delas não contêm dados suficientes para o início da investigação,
principalmente no que diz respeito ao endereço do abusado e/ou do abusador. Por
outro lado, algumas das denúncias anônimas são feitas pelas próprias vítimas,
que não encontram segurança em seus responsáveis, já que muitos deles são os
próprios autores dos crimes.
Apuração dos crimes
A
delegada Lara Schuster informa que é função do DAGV não somente acolher a
vítima e atendê-la, como também instaurar inquérito policial para apuração dos
crimes. “Inserimos a criança ou adolescente na rede de atendimentos com o
encaminhando ao Instituto Médico Legal (IML), onde ela será submetida ao exame
pericial; à Maternidade Nossa Senhora de Lourdes, para exames clínicos e
administração de medicamentos para prevenção e combate às doenças sexualmente
transmissíveis; ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social
(Creas) São João de Deus, para acompanhamento psicológico, como também,
comunicamos o caso ao Conselho Tutelar competente, para adoção das medidas
previstas no Estatuto da Criança e ao Adolescente (ECA)”, orienta.
Uma
vez comprovada a autoria e a materialidade do delito, o agressor é indiciado
(acusado) e, se for o caso, representada a sua prisão à Justiça. A delegada do
DAGV também costuma orientar pais ou responsáveis pelos menores a estarem mais
presentes nas vidas dos filhos ou pupilos, atuando como modelos e orientadores,
ocupando seu lugar de autoridade, conversando e reservando tempo para ouvir
suas histórias e experiências.
“É
muito importante ficar sempre atento a qualquer mudança de comportamento da
criança e/ou adolescente, como o interesse excessivo sobre assuntos de natureza
sexual, depressão ou isolamento social, dificuldade de aprendizagem e
concentração, mudança súbita de conduta, agressividade, ansiedade, dor ou
inchaço nas áreas genital ou anal, terror e medo de algumas pessoas ou lugares,
fantasias excessivas, pesadelos, comportamento sexual inapropriado para a
idade, sinais que podem indicar que alguma coisa está atrapalhando seu o
desenvolvimento”, alerta Schuster.
Em
casos de suspeita sobre a prática de qualquer crime contra criança e
adolescente, denunciar é a atitude esperada. “Existem vários mecanismos para
efetivar essa denúncia, que pode ser feita de forma anônima, através do Disque
100, que é o número disponibilizado para denúncia de âmbito nacional, ou 181,
que é o Disque Denúncia Estadual. As denúncias também podem ser feitas nos
conselhos tutelares e no Ministério Público Estadual (MPE)”, orienta a
delegada.
Cumprimento do ECA
O
coordenador do Conselho Tutelar do 2º Distrito de Aracaju, Alexandre Santiago,lembra
que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 5º, deixa claro
que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido
na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
fundamentais”.
Nesse
sentindo, o Conselho Tutelar costuma ser a primeira instância a que se deve
recorrer para denunciar qualquer tipo de violação dos Direitos da Criança e do
Adolescente. Ele atende crianças e adolescentes com direitos ameaçados ou
violados; aconselha e acompanha pais ou responsáveis; encaminha-os a órgãos e
projetos que promovam sua inclusão social e aplica medidas de proteção.
Os
Conselhos Tutelares também podem requisitar serviços públicos nas áreas de
saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança, assim como
o apoio de organizações da sociedade civil para inserir crianças e adolescentes
expostas a situações de risco em programas sociais.
“Trabalhamos
mais com três tipos de violência: a física, a psicológica e a sexual. Esta
última abrange abuso, incesto, estupro, atentado ao pudor, assédio e exploração
sexual, pornografia, exibicionismo, voyeurismo (obtenção de prazer sexual
através da observação de pessoas) e pedofilia. Todas essas são formas de
violência sexual praticadas contra crianças e adolescentes, mas os casos mais
sérios costumam ir direto para as delegacias, em especial, a DEACAV, que fica
no DAGV”, explica Alexandre.
“Fazemos
o possível para zelar pelo cumprimento do ECA, mas muitas vezes todo o nosso
trabalho acaba sendo uma corrente quebrada pelo poder público, que muitas vezes
é o poder mais irresponsável que existe. Ele costuma dizer que criança é
prioridade absoluta, mas, em muitas ocasiões, nada faz para resolver um
problema. O Conselho Tutelar faz sua parte de trabalho e de luta, mas, repito:
acaba sofrendo as consequências de um poder público irresponsável”, desabafa o
conselheiro tutelar.
Abuso e exploração
sexual
Alexandre
Santiago destaca, também, que no tocante a questões de abuso sexual contra a
vida infanto-juvenil, é necessário, em primeiro lugar, ter conhecimento do que
o termo quer dizer. Destaque-se que por abuso sexual se entende toda situação
em que uma criança ou adolescente é usada para a satisfação sexual de um adulto
ou mesmo de um adolescente mais velho, baseado numa relação de poder. Pode
ocorrer de diversas formas e em qualquer classe social, com ou sem contato físico
e mediante violência ou não (persuasão, sedução, presentes e/ou mentiras).
No
entanto, o secretário de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania, Luiz
Eduardo Oliva, julga importante esclarecer que existe diferença entre abuso e
exploração sexual. “Por exploração sexual entende-se a prática sexual com
crianças e adolescentes com fins comerciais. São considerados exploradores o
cliente, aquele que paga pelos serviços sexuais, e seus intermediários, que
induzem, facilitam ou obrigam crianças e adolescentes a se prostituírem com o
objetivo de obter lucro”, diz,
Oliva
informa, também, que a Lei nº 12.015, de agosto de 2009, trouxe algumas
inovações para o Código Penal Brasileiro, incluindo o delito de estupro de
vulnerável, que é a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com
menor de 14 anos. Assim, estão incluídas como estupro a prática de beijos sensuais,
penetração anal e carícias íntimas, não sendo mais exigida a penetração do
pênis na vagina, podendo a pessoa do sexo masculino ser vítima de estupro e a
pessoa do sexo feminino ser autora do delito.
Outra
inovação é a não exigência de representação dos pais ou responsáveis pela
criança e/ou adolescente para instauração do inquérito policial, devendo a
polícia atuar assim que tomar conhecimento da prática do fato, mesmo sem
consentimento dos familiares da vítima.
A
ausência de contato físico não descaracteriza o abuso, que também pode ocorrer
por meio de cantadas obscenas, exibição dos órgãos sexuais com intenção
erótica, pornografia infantil (fotos e poses pornográficas ou de sexo explícito
com crianças e adolescentes).
Crimes sexuais x
internet
Segundo
dados do Ministério das Comunicações, o Brasil é o país da América Latina com
maior número de usuários de internet, ocupando o 10º lugar do mundo em número
de pessoas com acesso à internet, grande parte formada por crianças e
adolescentes. A internet é uma porta
democrática para o mundo da informação, possibilitando a comunicação sem
barreiras de tempo e espaço, disponibilizando informações sobre qualquer
assunto, desde pesquisas escolares, entretenimento, compras, e é aí que mora o
perigo. Cuidados maiores precisam ser tomados.
“Além
das informações positivas, existem sites e pessoas que procuram enganar,
seduzir ou incitar os menores a acessarem conteúdos inadequados, como
pornografia, ou mesmo enviar fotos e informações pessoais com esse propósito”,
adverte a delegada Lara Schuster. No entanto, segundo ela, a solução não é
eliminar a internet, mas aprender a utilizá-la com qualidade e segurança, pois
o “lobo mau” moderno entra na vida das crianças pelas janelas virtuais. Nesse
tipo de contato, o pedófilo geralmente utiliza chats, MSN, Orkut, NetMeeting,
enviando “iscas” para atrair os menores, sugerindo que liguem a webcam para
fotografá-los sem que eles saibam e depois os chantageiam para conseguir mais
imagens, sob ameaça de divulgação das anteriores.
Ele
pode levar muito tempo preparando o cerco à sua vítima, tornando-se um amigo e
criando uma atmosfera de acolhimento e dependência. “Assim, os responsáveis
devem acompanhar e orientar suas crianças e adolescentes também no mundo
virtual, servindo de guia também nesse espaço, instalando programas
bloqueadores e limitando o tempo de utilização, variando as atividades diárias
para um desenvolvimento saudável, planejando horários de lazer longe da TV e do
computador, enfim, estreitando os vínculos e abrindo espaço para o diálogo”,
orienta a delegada Lara Schuster.
Quebrando o silêncio
Como
se pode ver, a temática ‘violência sexual contra crianças e adolescentes’ tem
sido uma realidade crescente em Sergipe. Diante de números que assustam, existe,
no Estado, uma política de enfrentamento contra esse tipo de prática? A
coordenadora da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania (SEDHUC),
Raquel Pacagnella, assegura que sim.
“Essa
política de enfrentamento é tratada de forma intersetorial, envolvendo todas as
secretarias em uma mesma finalidade. No ano passado, foi criado um grupo gestor
de enfrentamento à violência sexual de crianças e adolescentes, que é
coordenado pela Secretaria de Estado da Inclusão, Assistência e Desenvolvimento
Social (Seids). As atividades estão focadas nas capacitações da rede de
proteção (conselhos tutelares, maternidades, IML, delegacias e todas as portas
de entrada para assistência às vítimas)”, explica Raquel.
“Também
trabalhamos na articulação para que as vítimas sejam menos vitimizadas do que
costumam ser, evitando passar por várias instâncias para ter que completar o
atendimento”, acrescenta a coordenadora da Sedhuc.Pacagnellainforma, ainda, que
a Sedhuc assinou um convênio com a Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República para, a partir do próximo mês, começar a executar o
projeto ‘Quebrando o silêncio’.
“A
proposta é implantar uma metodologia que ajude a fazer funcionar o plano de
enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes no Estado de Sergipe.
Além disso, ele pretende estimular que os municípios também criem seus planos. A
princípio, serão contempladas as cidades com contingente populacional maior, a
exemplo de Itabaiana, Propriá, Estância e Canindé, além de Aracaju e da Grande
Aracaju. A idéia é estender essa metodologia para outros municípios, no próximo
ano”, ressalta Raquel.
A
articulação do Quebrando o silêncio acontecerá diretamente com os gestores
municipais e membros da sociedade civil. “Será traçado um diagnóstico de cada
região, depois, planos de operativos locais e audiências públicas com sociedade
em geral para pactuar as açõese colocá-las em prática o plano de enfrentamento
a violência contra crianças e adolescentes. Cada local tem sua realidade e o
plano estará voltado para ela”, diz Raquel.
Dia Nacional de
combate
A
Sedhuc também estará ampliando suas ações durante o mês de maio, já que no dia
18 se comemora o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de
Crianças e Adolescentes. “Ao invés de efetivarmos uma programação apenas no dia
18, estaremos realizando durante todas as quintas-feiras de maio em, pelo
menos, cinco regiões do Estado. Vamos levar a discussão para a comunidade, com
vídeos sobre a temática e atividades lúdicas para as crianças”, adianta Raquel.